sábado, 7 de maio de 2011

O vizinho da frente

O vizinho da frente mora logo aqui. Na calçada subsequente ao último degrau da escadaria de acesso à rua. Nessa mistura inconsciente, ele mora na minha rua, eu moro na dele. Sua casa é no passeio da minha. A caixa de papelão que um dia embalou minha máquina de lavar roupa, hoje embala seus sonhos no doce desconforto de uma cama endurecida. A caixa em que veio minha televisão empacota bugigangas que ele acumula sem finalidade aparente.

Nos mudamos mais ou menos na mesma época. Nesse ínterim, nos habituamos a cruzar alguns olhares. Às vezes, quando saio para comprar pão, na volta, dou uns dois pra ele. Ele me agradece com um sorriso embriagado, onde alguns dentes estão pela metade, outros podres e muitos já inexistentes. Seu cabelo, apesar de curto é sujo e seu cheiro, naturalmente, forte. Não importa o clima, ele está sempre de casaco.
Tem o Pretin, que é o cachorro que mora com ele. Não tenho nojo de cachorros, por mais sujos que estejam. Quando o Pretin aparece sempre agrado. Vez ou outra até brinco com cão, jogo qualquer coisa para ele ir buscar. O sujeito, no entanto só me olha. Esboça um sorriso quase igual ao de agradecimento do pão, mas quando a envergadura de seus lábios vão denunciar alguma simpatia, ele muda o semblante entortando as sobrancelhas. Já não sei se está bravo comigo ou com o cachorro. Nem sei se está bravo de fato ou tendo um ataque de loucura, coisa do tipo. Me despeço do animal e vou embora.

Outro dia, voltando do trabalho, vi o homem segurando umas fotos. Parecia que elas eram de uma família. Não consegui ver direito, fiquei com medo de que ele reparasse que eu estava tentando vê-las. Pelo que percebi, tinha um homem e uma mulher acompanhados de três crianças na foto. Meio antiga. Mas acho que não era nada demais.

Faz mais ou menos dois anos que me mudei e ontem, quando fui comprar pão, o sujeito estava deitado de bruços. Na volta da padaria, havia uma ambulância da prefeitura parada no meio fio. Não parei. Acho meio deselegante parar para ver a desgraça alheia. Além do que, eu não era parente nem nada. Passei na portaria, peguei a correspondência e fui até a janela espiar o que acontecia na rua. O sujeito estava morto, ou, pelo menos, imóvel o suficiente para isso.
Depois de alguma conversa num tom de negociação e acerto de tarefas, dois enfermeiros, protegidos com luvas de borracha, pegaram o corpo. Um agarrou nos braços e o outro nas canelas. Colocaram o corpo em uma maca dentro da ambulância e ela saiu com a sirene desligada mesmo.

Achei que, pro sujeito, talvez tenha sido melhor assim. Agora ele não iria mais sofrer. Não iria mais precisar morar na rua. Fui olhar a correspondência e, no meio delas, um papel meio amassado, com um cheiro um tanto familiar trazia algumas letras em uma grafia bastante precária:

“O mundo, ó alma cansada
É uma porta aberta, por onde
Se vê, logo defronte,
Uma outra porta, fechada.”


Texto – Victor Callil

Poema final – Fernando Pessoa

Um comentário:

  1. PUTS victor!! animal o texto olha! Fiquei imaginando as cenas pela riqueza dos detalhes! Parabéns!

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