por Jacqueline Quaresemin de Oliveira*
Os dados do
Censo 2010, “resultados da amostra”, divulgados em 17/10 pelo IBGE, mostram um
crescimento de 7,8% das uniões consensuais na última década, mais frequente
entre pessoas até 39 anos e nas classes com menor rendimento, chegando a 48,9%
dos que têm rendimento até ½ salário mínimo (per capta). Distribuídos por cor
ou raça as uniões consensuais revelam que 46,6% são escolhas dos que se declararam
pretos e 42,6% são dos que se declararam pardos.
Gilberto Freyre[1] já
mostrava que a ausência de dote facilitou a sexualidade nas camadas mais baixas
no período colonial, estando às uniões ilegais relacionadas a questões
socioeconômicas mais precárias. O que era motivo de preocupação para a igreja
que, na função de instituir e monitorar o comportamento punia severamente as
pessoas que viviam maritalmente juntas sem o sacramento do matrimonio.
O casamento é um dos principais rituais das tradições culturais e
religiosas ao longo da historia. A aliança que para os Egípcios significava o
“circulo eterno” de amor entre o casal, e que para os Gregos foi colocado na
mão esquerda porque se acreditava que por ali passava uma veia que vai direto
ao coração, se transformara em pacto de classe no período medieval.
O modelo
tradicional que determinava o homem como provedor de sustento da família e a
mulher, quando não moeda de troca, o cuidado da casa e dos filhos, tem origem
em um passado onde os casamentos eram obrigados a durar
por toda vida, pois dele dependiam a manutenção e ampliação do patrimônio,
acordos políticos, além da função primária da reprodução. O casamento era (e será por muito tempo) um dos principais pilares de
sustentação da estabilidade social. As religiões o
colocaram no “campo do sagrado”, mas não conseguiram garantir sua eternidade,
principalmente porque as relações se inserem na complexidade do social.
Talvez
às mulheres continuem a sonhar com relações mais duradouras (ou eternas) e os
homens ainda resistam aos novos papeis assumidos pelas mulheres, mas é fato que
ambos tentam se adequar a uma nova realidade, onde não há
mais lugar para os inflexíveis papéis determinados até então. É nesse contexto
que crescem os relacionamentos. Enquanto a união consensual (7,8%) foi a
principal escolha para os sem religião (59,9%), o casamento civil e religioso
teve maior frequência entre as pessoas que se declararam católicas (37,5%) ou
evangélicas (26,5%). Sem acabar com o modelo tradicional,
pode-se conviver com outros modelos de relacionamento, inclusive o
relacionamento homossexual, onde há predominância de católicos (47,4%) e sem
religião (20,4%), vivendo em uniões consensuais no Sudeste (52,6%).
Os dados divulgados
traduzem que a anterior estrutura rígida e tradicional do casamento é agora
flexibilizada pela multiplicidade de papeis que assumem homens e mulheres. O vínculo legal há muito não é requisito para constituição
de família ou vida conjugal. A partilha da mesma casa e a requisito
heterossexual estão sendo questionados. Daí o crescimento de 15,1% de domicílios sobre responsabilidade das mulheres na
última década (22,2% para 37,3%), inclusive em presença de cônjuge (19,5% para
46,4%), como mostrou o Censo.
Tal resultado revela uma mudança de gênero no que
tange ao papel da mulher na sociedade, decorrente da maior participação no
mercado de trabalho e a ampliação da escolaridade para níveis mais elevados de
instrução, inclusive superior, e por consequência a provisão econômica das
famílias. Ter-se-ia que trabalhar com microdados do Censo 2010 para verificar o
percentual de mulheres que são responsáveis pelos domicílios vivendo em condições precárias. Solteiras, separadas, viúvas ou
casadas, muitas vezes subempregadas, desempregadas e/ou convivendo com o
trabalho precário dos cônjuges, sem lugar onde deixar os filhos, entre outras
dificuldades, assumem a responsabilidade da família em situações adversas. Tal
quadro pode revelar as desigualdades sociais e de gênero decorrente da pobreza,
trabalho precário, dupla jornada e, muitas vezes violência domestica a que
estão submetidas um percentual significativo de mulheres responsáveis pelo
domicilio. Sem esquecer que em 21,2% do total de domicílios sob responsabilidade das mulheres os rendimentos provem do
cônjuge, geralmente homens.
Quando as mulheres foram
para o mercado de trabalho não era somente para complementar a renda familiar,
mas para terem sua própria renda e autonomia financeira. A maior participação
dessas no mercado não significou uma divisão ou transferência do trabalho
doméstico (não remunerado). Estudo do IPEA[2]
sobre a PNAD de 2009 mostrou que as mulheres têm mais anos de estudo que
homens, se dividem entre trabalho, cuidado com família e casa, tem remuneração
menor e trabalham mais horas que os homens. O retrato das mulheres responsáveis
pelos domicílios, segundo o estudo, era: solteiras, separadas e viúvas com ou
sem filhos, morando sozinhas, entre outras características. Mostrou ainda que o
tradicional arranjo “casal com filhos” (família tradicional) passa a ser
substituído por situações em que a mulher é a pessoa de referência. Ou seja, o
estudo do IPEA já mostrava a tendência de mudança na estrutura familiar
confirmado pelo Censo, que apresentou um crescimento de 2,3% de casais sem
filhos na última década.
O grau de competitividade
a que estão submetidos homens e mulheres para garantirem seus lugares no
mercado de trabalho, obriga-os a continuarem se aperfeiçoando. O que é positivo
do ponto de vista da qualificação e ambições pessoais, mas traz junto alto grau
de stress, principalmente para os que residem nas capitais e grandes centros
urbanos. A não divisão do trabalho doméstico agrava um pouco mais a situação
das mulheres e, possivelmente, tais fatores estejam impactando no decréscimo
das taxas de fecundidade. Questão que será aprofundada na sequencia de artigos
sobre os dados do Censo.
Voltando a pergunta
inicial de por que crescem os casamentos consensuais, uma resposta óbvia, mas
que deve ser dita, é que casar formalmente é caro. Sem
discutir os aspectos morais, as populações de menor renda sempre fizeram muito
esforço para adquirirem o título “casados”. Socialmente ficará mais caro ainda
se não forem repensadas questões culturais que atribuem à mulher o cuidado dos
filhos, família, casa (espaço privado),
e aos homens o comando dos negócios (espaço publico). Tal processo implica
repensar a questão da maternidade e do casamento, talvez porque a mulher não
queira mais assistir calada aos jogos sociais que afirmam a dominação
masculina, eternizando “os homens a amar
os jogos de poder e as mulheres a amar os homens que jogam” [3].
Há explicações mais simples e, talvez não menos profundas, como a de Arnaldo
Jabor[4]
observando que enquanto alguns homens perguntam "por
que comprar a vaca, se você pode beber o leite de graça?", as mulheres
estão percebendo “que não vale a pena comprar um porco inteiro
só para se ter uma linguiça”.
E se é estranho tal
comentário erótico, importante dizer que relações hetero ou homossexuais, com
ou sem as bênçãos da igreja, de casados, consensuais ou solteiros, são relações
de poder que se inserem no campo do erotismo, no campo da violência e da violação
de direitos, principalmente, o das mulheres.
*
Historiadora, Mestre em Sociologia pela UFRGS. Docente na Pós Graduação na
FESPSP. Consultora em Políticas Publica (UNESCO, IPEA e OEI). Diretora da
OPINARE Pesquisa & Consultoria.
[1] FREYRE, Gilberto. Casa Grande e
Senzala. Editora Record. 34ª
ed. Rio de Janeiro, 1998.
[2] IPEA - Primeiras Análises: Investigando a Chefia Feminina de Família
(série de análises do IPEA sobre a PNAD, período 2001-2009). Nov. 2011
[3] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Revista
Educação e Realidade.
Porto Alegre: Jul-Dez. 1995, p 166
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