quarta-feira, 31 de outubro de 2012

POR QUE CRESCEM AS UNIÕES CONSENSUAIS?



por Jacqueline Quaresemin de Oliveira
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Os dados do Censo 2010, “resultados da amostra”, divulgados em 17/10 pelo IBGE, mostram um crescimento de 7,8% das uniões consensuais na última década, mais frequente entre pessoas até 39 anos e nas classes com menor rendimento, chegando a 48,9% dos que têm rendimento até ½ salário mínimo (per capta). Distribuídos por cor ou raça as uniões consensuais revelam que 46,6% são escolhas dos que se declararam pretos e 42,6% são dos que se declararam pardos.
Gilberto Freyre[1] já mostrava que a ausência de dote facilitou a sexualidade nas camadas mais baixas no período colonial, estando às uniões ilegais relacionadas a questões socioeconômicas mais precárias. O que era motivo de preocupação para a igreja que, na função de instituir e monitorar o comportamento punia severamente as pessoas que viviam maritalmente juntas sem o sacramento do matrimonio.
O casamento é um dos principais rituais das tradições culturais e religiosas ao longo da historia. A aliança que para os Egípcios significava o “circulo eterno” de amor entre o casal, e que para os Gregos foi colocado na mão esquerda porque se acreditava que por ali passava uma veia que vai direto ao coração, se transformara em pacto de classe no período medieval.
O modelo tradicional que determinava o homem como provedor de sustento da família e a mulher, quando não moeda de troca, o cuidado da casa e dos filhos, tem origem em um passado onde os casamentos eram obrigados a durar por toda vida, pois dele dependiam a manutenção e ampliação do patrimônio, acordos políticos, além da função primária da reprodução. O casamento era (e será por muito tempo) um dos principais pilares de sustentação da estabilidade social. As religiões o colocaram no “campo do sagrado”, mas não conseguiram garantir sua eternidade, principalmente porque as relações se inserem na complexidade  do social.
Talvez às mulheres continuem a sonhar com relações mais duradouras (ou eternas) e os homens ainda resistam aos novos papeis assumidos pelas mulheres, mas é fato que ambos tentam se adequar a uma nova realidade, onde não há mais lugar para os inflexíveis papéis determinados até então. É nesse contexto que crescem os relacionamentos. Enquanto a união consensual (7,8%) foi a principal escolha para os sem religião (59,9%), o casamento civil e religioso teve maior frequência entre as pessoas que se declararam católicas (37,5%) ou evangélicas (26,5%). Sem acabar com o modelo tradicional, pode-se conviver com outros modelos de relacionamento, inclusive o relacionamento homossexual, onde há predominância de católicos (47,4%) e sem religião (20,4%), vivendo em uniões consensuais no Sudeste (52,6%).
Os dados divulgados traduzem que a anterior estrutura rígida e tradicional do casamento é agora flexibilizada pela multiplicidade de papeis que assumem homens e mulheres. O vínculo legal há muito não é requisito para constituição de família ou vida conjugal. A partilha da mesma casa e a requisito heterossexual estão sendo questionados. Daí o crescimento de 15,1% de domicílios sobre responsabilidade das mulheres na última década (22,2% para 37,3%), inclusive em presença de cônjuge (19,5% para 46,4%), como mostrou o Censo.
Tal resultado revela uma mudança de gênero no que tange ao papel da mulher na sociedade, decorrente da maior participação no mercado de trabalho e a ampliação da escolaridade para níveis mais elevados de instrução, inclusive superior, e por consequência a provisão econômica das famílias. Ter-se-ia que trabalhar com microdados do Censo 2010 para verificar o percentual de mulheres que são responsáveis pelos domicílios vivendo em condições precárias. Solteiras, separadas, viúvas ou casadas, muitas vezes subempregadas, desempregadas e/ou convivendo com o trabalho precário dos cônjuges, sem lugar onde deixar os filhos, entre outras dificuldades, assumem a responsabilidade da família em situações adversas. Tal quadro pode revelar as desigualdades sociais e de gênero decorrente da pobreza, trabalho precário, dupla jornada e, muitas vezes violência domestica a que estão submetidas um percentual significativo de mulheres responsáveis pelo domicilio. Sem esquecer que em 21,2% do total de domicílios sob responsabilidade das mulheres os rendimentos provem do cônjuge, geralmente homens.
Quando as mulheres foram para o mercado de trabalho não era somente para complementar a renda familiar, mas para terem sua própria renda e autonomia financeira. A maior participação dessas no mercado não significou uma divisão ou transferência do trabalho doméstico (não remunerado). Estudo do IPEA[2] sobre a PNAD de 2009 mostrou que as mulheres têm mais anos de estudo que homens, se dividem entre trabalho, cuidado com família e casa, tem remuneração menor e trabalham mais horas que os homens. O retrato das mulheres responsáveis pelos domicílios, segundo o estudo, era: solteiras, separadas e viúvas com ou sem filhos, morando sozinhas, entre outras características. Mostrou ainda que o tradicional arranjo “casal com filhos” (família tradicional) passa a ser substituído por situações em que a mulher é a pessoa de referência. Ou seja, o estudo do IPEA já mostrava a tendência de mudança na estrutura familiar confirmado pelo Censo, que apresentou um crescimento de 2,3% de casais sem filhos na última década.
O grau de competitividade a que estão submetidos homens e mulheres para garantirem seus lugares no mercado de trabalho, obriga-os a continuarem se aperfeiçoando. O que é positivo do ponto de vista da qualificação e ambições pessoais, mas traz junto alto grau de stress, principalmente para os que residem nas capitais e grandes centros urbanos. A não divisão do trabalho doméstico agrava um pouco mais a situação das mulheres e, possivelmente, tais fatores estejam impactando no decréscimo das taxas de fecundidade. Questão que será aprofundada na sequencia de artigos sobre os dados do Censo.
Voltando a pergunta inicial de por que crescem os casamentos consensuais, uma resposta óbvia, mas que deve ser dita, é que casar formalmente é caro. Sem discutir os aspectos morais, as populações de menor renda sempre fizeram muito esforço para adquirirem o título “casados”. Socialmente ficará mais caro ainda se não forem repensadas questões culturais que atribuem à mulher o cuidado dos filhos, família, casa (espaço privado), e aos homens o comando dos negócios (espaço publico). Tal processo implica repensar a questão da maternidade e do casamento, talvez porque a mulher não queira mais assistir calada aos jogos sociais que afirmam a dominação masculina, eternizando “os homens a amar os jogos de poder e as mulheres a amar os homens que jogam[3]. Há explicações mais simples e, talvez não menos profundas, como a de Arnaldo Jabor[4] observando que enquanto alguns homens perguntam "por que comprar a vaca, se você pode beber o leite de graça?", as mulheres estão percebendo “que não vale a pena comprar um porco inteiro só para se ter uma linguiça”.
E se é estranho tal comentário erótico, importante dizer que relações hetero ou homossexuais, com ou sem as bênçãos da igreja, de casados, consensuais ou solteiros, são relações de poder que se inserem no campo do erotismo, no campo da violência e da violação de direitos, principalmente, o das mulheres.


* Historiadora, Mestre em Sociologia pela UFRGS. Docente na Pós Graduação na FESPSP. Consultora em Políticas Publica (UNESCO, IPEA e OEI). Diretora da OPINARE Pesquisa & Consultoria.
[1] FREYRE, Gilberto. Casa Grande e SenzalaEditora Record. 34ª ed. Rio de Janeiro, 1998.
[2] IPEA - Primeiras Análises: Investigando a Chefia Feminina de Família (série de análises do IPEA sobre a PNAD, período 2001-2009). Nov. 2011
[3] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Revista Educação e Realidade. Porto Alegre: Jul-Dez. 1995, p 166

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